terça-feira, 1 de outubro de 2013

A VEZ DE OUTUBRO

ERA A VEZ DE OUTUBRO, POR ISSO FAZIA FRIO NAQUELA NOITE, E AS 
FOLHAS estavam vermelhas e alaranjadas e caíam das árvores que circundavam
a clareira. Os doze estavam sentados ao redor de uma fogueira, assando
enormes lingüiças espetadas em varetas — que estalavam e estouravam ao
pingar gordura nos ramos incandescentes de macieira — e tomando sidra
fresca, que lhes enchia a boca com seu gosto agridoce.
Abril deu uma mordidinha tímida em sua lingüiça, que lhe rebentou na
boca e derramou gordura quente em seu queixo.
 — Maldita porcaria! — exclamou ela.
Março, agachado ao lado dela, deu uma risadinha perversa e puxou um
enorme lenço sujo.
 — Tome — ele disse. Abril limpou o queixo.
 — Obrigada. Este miserável saco de tripas me queimou. Vai fazer uma
bolha amanhã.
Setembro bocejou.
 — Você é tão hipocondríaca — alfinetou, do outro lado da fogueira. —
E que linguajar. — Ele tinha um bigodinho fino e grandes entradas no cabelo,
que faziam sua testa parecer ampla e sábia.
— Deixe-a em paz — pediu Maio, com seu cabelo preto escovinha e
seus coturnos delicados. Ela fumava uma cigarrilha marrom com um forte
cheiro de cravo. — Ela é sensível.
— Ora, por favor — retrucou Setembro. — Me poupe.
Outubro, ciente de sua posição de destaque, sorveu sua sidra, limpou a
garganta e anunciou:
 — Muito bem. Quem quer começar?
A cadeira na qual estava acomodado fora entalhada num enorme bloco
de carvalho, decorado com freixo, cedro e cerejeira. Espaçados a intervalos
regulares em volta da pequena fogueira, os outros onze se encontravam
sentados em tocos de troncos, que, após anos de uso, estavam lisos e
confortáveis.
 — E a ata? — perguntou Janeiro. — Sempre fazemos a ata quando eu
estou na cadeira.
 — Mas você não está na cadeira agora, está, querido? — provocou
Setembro, criatura elegante de fingida boa vontade.
 — E a ata? — repetiu Janeiro. — Não podem ignorá-la.
 — Ela que se ate sozinha — ralhou Abril, correndo a mão por seus
longos cabelos louros. — E eu acho que Setembro deveria começar.
Setembro empertigou-se e assentiu:
 — Com prazer.
 — Ei! — interveio Fevereiro. — Ei-ei-ei-ei-ei-ei-ei. Não ouvi o
presidente ratificando essa decisão. Ninguém se pronuncia enquanto Outubro
não disser quem começa, e aí ninguém mais fala. Será que dá pra gente ter um
mínimo de ordem aqui? — Ele os encarou, miúdo, pálido, todo vestido em azul
e cinza.
 — Tudo bem — conciliou Outubro. Sua barba era multicolorida, um
bosque no outono, marrom-escura, laranja como o fogo e vermelha como o
vinho, um emaranhado de fios na parte de baixo do seu rosto. Suas bochechas
eram rubras como maçãs. Ele parecia um amigo, alguém que você conhece há
uma vida. — Setembro pode falar primeiro. Vamos começar.
Setembro colocou o último pedaço de sua lingüiça na boca, mastigou
delicadamente e tomou toda a sidra de sua caneca. Depois se levantou, curvouse para o grupo e começou a falar.
 — Laurent DeLisle era o melhor chef de toda Seattle. Bom, ao menos era
o que ele mesmo pensava, e as estrelas do Guia Michelin na porta de seu
restaurante confirmavam sua opinião. Era um chef notável, é verdade.
Seu brioche de carneiro ganhara vários prêmios, sua gralha defumada
com ravióli de trufa branca havia sido descrita pela Gastronome como "a décima
maravilha do mundo". Mas era a sua adega de vinhos... ah, aquela adega... o
seu maior motivo de orgulho e sua paixão. Eu entendo isso. As últimas uvas
brancas são colhidas em mim, e a maior parte das escuras. Eu aprecio vinhos
finos, seu buquê, seu paladar, e seu sabor residual também. Laurent DeLisle
comprava seus vinhos em leilões, de aficionados particulares, de comerciantes
confiáveis: insistia em ver o pedigree de cada vinho, porque as fraudes são,
infelizmente, muito comuns quando uma garrafa chega a valer 5, 10, 100 mil
dólares, ou libras, ou euros. O tesouro, a jóia, o mais raro dos raros e o creme de
Ia creme de sua adega climatizada era uma garrafa de Château Lalute 1902.
Estava cotado em 120 mil dólares, embora na verdade não tivesse preço, por ser
a última garrafa existente.
 — Com licença — disse Agosto educadamente. Era o mais gordo de
todos, seu cabelo ralo penteado em mechas douradas que aderiam à sua careca
rosada.
Setembro fuzilou seu vizinho com o olhar: — Sim?
 — Essa é aquela em que um cara rico pede o vinho pra acompanhar o
jantar, e o chef decide que o prato que o ricaço pediu não é bom o suficiente pro
vinho, daí ele serve um prato diferente, e o cara dá uma garfada, e ele tem, tipo,
uma alergia rara e morre na hora, e no fim o vinho nunca é tomado?
Setembro não respondeu nada, apenas olhou profundamente.
 — Porque, se for essa, você já contou. Há anos. Achei boba na época.
Continua sendo boba. — Agosto sorriu. Suas bochechas rosadas brilharam à luz
da fogueira.
Setembro, então, disse:
 — Obviamente, pathos e cultura não são do agrado de todos. Algumas
pessoas preferem churrasco e cerveja, ao passo que nós gostamos...
Fevereiro o interrompeu:
 — Bem, odeio dizer isto, mas até que ele tem razão. A história tem que
ser nova.
Setembro levantou uma sobrancelha e apertou os lábios.
 — Acabei — anunciou abruptamente, e se sentou em seu loco. Eles se
entreolharam por cima da fogueira, os meses do ano. Junho, hesitante e bemeducada, levantou a mão e disse:
— Eu tenho a história da operadora da máquina de raio X do Aeroporto
La Guardiã que conseguia saber tudo sobre qualquer pessoa pelos contornos
das bagagens na tela, e um dia ela viu um raio X de bagagem tão lindo que se
apaixonou pela pessoa dona daquela bagagem, e ela precisava descobrir qual
das pessoas da fila era aquela, mas não conseguiu, e aí ela sofreu por meses e
meses. E quando a pessoa passou de novo, daquela vez ela soube, e era um
homem, um indiano velho todo enrugado, e ela era bonita, negra e tinha, tipo,
25 anos, e ela viu que aquilo nunca daria certo, então ela o deixou passar,
porque também conseguiu ver pelas formas das bagagens na tela que ele ia
morrer logo.
Outubro aprovou:
 — Muito bem, jovem Junho. Conte essa.
Junho olhou para ele como um animal assustado:
 — Acabei de contar. Outubro assentiu.
 — Contou mesmo — disse, antes que qualquer um dos outros pudesse
falar algo. E continuou: — Vamos prosseguir com a minha história, então?
Fevereiro fungou:
 — Fora da ordem, amigão. Quem está na cadeira só pode contar sua
história depois que todos os outros acabam. Não dá pra passar direto à atração
principal.
— Deixa o cara contar a história se ele quiser — pediu Maio, que estava colocando uma dúzia de castanhas na grelha, dispondo-as ordenadamente com
um pegador. — Com certeza não será pior que a do vinho. E eu preciso voltar
prós meus afazeres. As flores não desabrocham sozinhas. Todos a favor?
 — Vai pedir um voto formal? — perguntou Fevereiro. — Eu não
acredito. Não acredito que isso está acontecendo — e enxugou a testa com um
punhado de lenços de papel que puxara da manga.
Sete mãos foram levantadas. Quatro meses ficaram imóveis: Fevereiro,
Setembro, Janeiro e Julho.
— Não é nada pessoal —, justificou-se Julho em tom de desculpas. I,
puramente pelo procedimento. Não deveríamos abrir precedentes.
— Está decidido, então — anunciou Outubro. — Alguém quer falar
alguma coisa antes que eu comece?
— Hã. Sim. Às vezes — disse Junho —, às vezes acho que alguém está
nos espiando na floresta, e aí eu olho e não tem ninguém. Mas mesmo assim
continuo não achando isso.
Abriu retrucou:
— É porque você é louca.
— Hm — comentou Setembro, dirigindo-se a todos. — Esta é a nossa
Abril. Sensível, mas também a mais cruel.
— Chega! — exclamou Outubro. Ele se espreguiçou na cadeira,
quebrou uma avelã com os dentes, tirou o miolo, jogou os pedaços da casca no
logo, onde eles chiaram e pipocaram, e começou.
* * *
Havia um menino, disse Outubro, que sofria muito em sua casa, embora
não apanhasse. Ele parecia não pertencer à sua família, à sua cidade, nem
mesmo à vida. Tinha irmãos gêmeos, mais velhos do que ele, que o magoavam
ou o ignoravam e eram muito queridos pela vizinhança. Os dois jogavam
futebol, e quase sempre um deles era o artilheiro e herói da partida. O caçula
não jogava futebol. Eles tinham um apelido para ele: chamavam-no de Nanico.
Chamavam-no assim desde que ele era bebê, e de início seus pais os
repreenderam por isso. Os gêmeos disseram:
 — Mas ele é nanico mesmo. Olhem pra ele. Olhem pra nós.
Os garotos tinham 6 anos quando disseram isso. Seus pais acharam
bonitinho. Um apelido como Nanico pode ser contagioso, e assim, em pouco
tempo, apenas a avó do menino — quando ligava no seu aniversário — e
pessoas que não o conheciam ainda o chamavam de Donald.
Talvez pelo fato de que apelidos têm poder, ele era um nanico: magrelo,
baixinho e nervoso. Nascera com o nariz escorrendo e, uma década depois, ele
continuava escorrendo. Na hora das refeições, quando os gêmeos gostavam da
comida, roubavam do seu prato. Quando não gostavam, davam um jeito de
colocá-la no prato dele, e ele levava bronca por ter deixado sobrar comida.
O pai deles nunca perdia os jogos de futebol e, no final, comprava um
sorvete para o gêmeo que marcasse mais pontos e um sorvete como prêmio de
consolação para o outro. A mãe deles dizia que era jornalista, embora seu
trabalho fosse, na verdade, vender anúncios e assinaturas: ela voltou a trabalhar
em tempo integral assim que os gêmeos cresceram o suficiente para se virar
sozinhos.
Os outros garotos da classe desse menino admiravam os gêmeos. Eles o
chamaram de Donald durante várias semanas na primeira série, até que
souberam que seus irmãos o chamavam de Nanico. Seus professores raramente
o chamavam assim, embora, entre eles, às vezes comentassem que era uma
pena o menino mais novo dos Covay não ter o porte, a imaginação ou a
vivacidade dos irmãos.
O Nanico não seria capaz de dizer quando decidiu fugir de casa, nem
quando seus sonhos se transformaram num plano. Quando admitiu para si
mesmo que iria embora, ele já tinha escondido um grande tupperware debaixo
de um plástico atrás da garagem, contendo três chocolates Mars, dois Milky
Ways, um saco de nozes, um saquinho de pastilhas de alcaçuz, uma lanterna,
vários gibis, um pacote fechado de carne-seca em conserva e 37 dólares, a maior
parte em moedas. Ele não gostava do sabor da carne-seca, mas lera que
exploradores haviam sobrevivido por semanas sem comer outra coisa. E foi quando pôs o pacote de carne-seca no tupperware e apertou a tampa, fechandoa, que ele soube que ia ter que fugir.
Ele havia lido livros, jornais e revistas. Sabia que, quando você foge de
casa, às vezes encontra gente ruim que faz coisas ruins com você. Mas também
lera contos de fadas, e sabia que havia pessoas boas no mundo, em meio aos
monstros.
O Nanico era um menino magrinho de 10 anos, baixinho, com o nariz
escorrendo e o semblante vazio. Se você tentasse apontá-lo num grupo de
garotos iriam apontar errado. Ele seria o outro, o garoto ao lado, aquele pelo
qual você passou batido.
Durante todo o mês de setembro ele adiou a fuga. Só numa sexta-feira
especialmente ruim, quando seus dois irmãos sentaram em cima dele (e o que
sentou no seu rosto soltou um pum e se matou de tanto rir), foi que chegou à
conclusão de que quaisquer monstros que estivessem à sua espera no mundo
seriam suportáveis, talvez até preferíveis.
No sábado, seus irmãos deveriam cuidar dele, mas logo foram para a
cidade visitar uma garota da qual gostavam. O Nanico contornou a garagem,
pegou o tupperware que estava debaixo do plástico e o levou para o seu quarto.
Ele esvaziou sua mochila em cima da cama e pôs nela os chocolates, os
gibis, as moedas e a carne-seca, e encheu com água uma garrafa de refrigerante.
O Nanico foi a pé para a cidade e tomou o ônibus. Ele foi para o oeste
até onde 10 dólares em moedas o levaram, um lugar que não conhecia, e que,
pensou ele, seria um bom ponto de partida, e aí desceu do ônibus e seguiu
lindando. Não havia calçada, por isso, quando os carros passavam, ele ia para a
vala ao lado da estrada, por segurança.
O sol estava alto. Ele sentiu fome e mexeu na mochila até achar um
chocolate. Depois de comê-lo, sentiu sede, e tomou quase metade da água da
garrafa antes de se dar conta de que precisaria racioná-la. Ele achava que, assim
que saísse da cidade, veria nascentes de água doce em toda parte, mas não
encontrou nenhuma. Havia um rio, no entanto, correndo sob uma ponte larga.
O Nanico parou no meio da ponte para olhar a água barrenta lá embaixo. Ele se lembrou de algo que ouvira na escola: que todos os rios corriam
para o mar. Ele nunca tinha ido para o litoral. Desceu até a margem e começou
a seguir o rio. Havia uma trilha lamacenta ao lado da margem, e latas de cerveja
e saquinhos de salgadinho vazios indicavam que já tinha passado (•ente por ali,
mas ele não viu ninguém durante a caminhada.
Ele bebeu o que restava da água.
Ele se perguntou se já estariam à sua procura. Imaginou viaturas
policiais, helicópteros e cães, todos tentando achá-lo. Ele os despistaria.
Conseguiria chegar ao mar.
No rio havia muitas pedras, a água espirrava quando batia nelas. Ele
viu uma garça azul, com as asas abertas, planando acima dele, algumas
libélulas solitárias de fim de estação e, às vezes, pequenas nuvens de
mosquitinhos aproveitando o veranico de outono. O céu azul se acinzentou no
crepúsculo, e um morcego fez um vôo rasante para comer insetos no ar. O
Nanico pôs-se a pensar onde iria dormir naquela noite.
Logo a trilha se bifurcou, e ele seguiu o caminho que se afastava do rio,
torcendo para encontrar uma casa ou uma fazenda com um celeiro vazio.
Andou por algum tempo enquanto escurecia, até que, no fim da trilha,
encontrou uma estranha e semidemolida casa de fazenda. O Nanico andou em
volta dela, ficando cada vez mais convencido de que nada neste mundo o faria
entrar ali, e em seguida pulou uma cerca arrebentada e foi até um pasto
abandonado, onde se deitou para dormir na grama alta, usando a mochila como
travesseiro.
Ficou deitado de costas, vestido, olhando para o céu. Estava sem um
pingo de sono.
— Já devem ter dado pela minha falta — disse para si mesmo. —
Devem estar preocupados.
Ele se imaginou voltando para casa dali a uns anos. O prazer
estampado no rosto dos familiares ao vê-lo chegar, as boas-vindas, o amor que...
Acordou horas depois, com a luz clara do luar no rosto. Conseguia ver
o mundo todo — como em pleno dia, como diz a canção de ninar, mas pálido e sem cor. Acima dele, a lua estava cheia, ou quase, e ele imaginou um rosto que
o olhava, não sem ternura, nas sombras e formas da superfície lunar.
Uma voz perguntou:
— De onde você veio?
Ele se sentou, sem medo, pelo menos até ali, e olhou ao seu redor.
Árvores. Grama alta.
— Cadê você? Não estou te vendo.
Algo que parecia uma sombra se mexeu, ao lado de uma árvore no
fundo do pasto, e ele viu um garoto da sua idade.
— Eu fugi de casa — contou o Nanico.
— Uau! — exclamou o garoto. — Precisa ter muita coragem pra isso.
O Nanico sorriu, orgulhoso. Não sabia o que dizer. — Quer andar um
pouquinho? — perguntou o garoto. — Claro. O Nanico deixou a mochila perto
da cerca para que fosse fácil encontrá-la depois.
Eles desceram a encosta e passaram bem longe do velho casarão. —
Alguém vive lá? — quis saber o Nanico. — Na verdade, não — respondeu o
outro garoto. Ele tinha cabelo claro e fininho, que ficava quase branco ao luar.
— Umas pessoas tentaram há muito tempo, mas não gostaram e foram embora.
Aí outras pessoas se mudaram pra — Mas ninguém vive ali agora. Como é o
teu nome? De que chamam você?
O menino hesitou um momento antes de falar: — Anjo.
— Que nome legal!
— Eu tinha outro nome, mas não dá mais pra ler. Eles se apertaram
para passar por um grande portão de ferro que a ferrugem emperrara semiaberto, e se viram à margem de um riacho ao pé da encosta.
— Este lugar é legal — comentou o Nanico.
— Havia dezenas de lápides de todos os tamanhos no local. Algumas
altas, maiores que os dois meninos, e outras pequenas, do tamanho certo para
se sentar. Algumas estavam quebradas. O Nanico sabia que lugar era aquele,
mas não sentiu medo. Era um lugar amado. — Quem está enterrado aqui?
— Quase todos são gente boa — respondeu Anjo. — Tinha uma
cidadezinha ali. Pra lá daquelas árvores. Aí a ferrovia veio e fizeram uma
estação na cidade vizinha, e nossa cidade meio que secou, desabou e foi levada
pelo vento. Agora tem mato e árvores lá. Dá pra se esconder nas árvores, entrar
nas casas velhas e pular as janelas. O Nanico perguntou:
— As casas são como aquele casarão? — O menino não iria querer
entrar nelas se fossem como ele.
— Não. Ninguém entra nelas, a não ser eu. E uns bichos, às vezes. Eu
sou a única criança por aqui.
 — Imaginei — disse o Nanico.
— A gente podia ir brincar nelas — sugeriu Anjo.
— Ia ser bem legal!
Era uma noite perfeita de outubro: quase tão quente quanto no verão, e
a lua cheia do equinócio dominava o céu. Tudo estava visível.
 — Qual destes é o seu? — perguntou o Nanico.
Anjo empertigou-se, orgulhoso, e pegou o outro garoto pela mão,
puxando-o para um canto do cemitério cheio de mato. Os dois meninos
afastaram a grama alta. A lápide jazia no chão, e tinha esculpidas datas de um
século atrás. Boa parte dela estava gasta, mas sob as datas era possível ler as
palavras
ANJO, DESCANSE EM PAZ JAMAIS SERÁ ESQU
— Esquecido, aposto — disse Anjo.
— É, também acho — concordou o Nanico.
Eles saíram pelo portão, desceram um barranco e entraram no que
restava da velha cidade. Arvores invadiam as casas, e os prédios haviam
desmoronado, mas o lugar não era assustador. Eles brincaram de escondeesconde. Exploraram. Anjo mostrou ao Nanico alguns lugares bem legais,
inclusive um pequeno chalé que, segundo ele, era a construção mais antiga de
toda aquela região. E até que estava bem conservado, considerando o quanto
era velho. — Consigo enxergar muito bem com a luz do luar — observou o
Nanico. — Mesmo dentro das casas. Não sabia que era tão fácil.
— É. E depois de um tempo você começa a enxergar até quando não
tem luar.
O Nanico ficou com inveja.
— Preciso ir ao banheiro. Tem algum lugar onde possa ir por aqui?
Anjo pensou por um momento. — Não sei. Eu não faço mais essas coisas. Tem
algumas privadas ainda inteiras, mas pode ser perigoso. E melhor fazer no
mato mesmo.
— Como um urso — disse o Nanico.
Ele saiu pelos fundos, foi para a mata que parecia empurrar o muro do
chalé, e agachou-se atrás de uma árvore. Nunca havia feito aquilo ao ar livre.
Sentiu-se um animal selvagem. Quando terminou, limpou-se com
folhas do chão. Em seguida, voltou para o chalé e saiu pela porta da frente.
Anjo estava sentado ao luar, esperando por ele.
— Corno você morreu? — perguntou o Nanico.
— Fiquei doente. Minha mãe chorou, ficou desesperada. Aí eu morri. —
Pra ficar aqui com você — disse o Nanico —, eu preciso estar morto também?
— Talvez — respondeu Anjo. — Bom, precisa. Eu acho.
— Como é estar morto?
— Não me incomoda — admitiu Anjo. — O pior de tudo é não ter
ninguém pra brincar.
— Mas deve ter um monte de gente perto daquele riozinho. Eles nunca
brincam com você?
— Nunca. Estão sempre dormindo. E, mesmo quando saem andando,
nunca querem saber de passear, ver coisas, fazer algo. Não querem saber de
mim. Está vendo aquela árvore?
Era uma faia, com sua casca cinzenta e lisa rachada pelo tempo. Estava
bem no meio do que devia ter sido a praça da cidade, 90 anos antes.
— Estou — respondeu o Nanico.
— Quer subir nela?
— Parece meio alta.
— É, sim. Muito alta. Mas é fácil subir. Eu te mostro. Era fácil subir
mesmo. Havia lugares para se segurar na casca, e os garotos escalaram a grande
faia como macacos, piratas ou guerreiros. Do alto da arvore dava pra ver o
mundo todo. Um fio de luz começava a despontar no céu, ao leste.
Tudo esperava. A noite estava terminando. O mundo prendia a
respiração, preparando-se para recomeçar.
Este foi o melhor dia da minha vida — comentou o Nanico.
 — Da minha também — disse Anjo. — O que você vai fazer agora?
 — Não sei.
Ele se imaginou viajando pelo mundo até chegar ao mar. Imaginou-se
crescendo e ficando velho, cuidando da própria vida. Em algum momento,
ficaria incrivelmente rico. E aí voltaria para a casa dos gêmeos, dirigindo seu
maravilhoso carro, ou talvez fosse a um jogo de futebol (na sua imaginação, os
gêmeos não tinham envelhecido nem crescido) e olhasse para eles do alto, com
ternura. Ele convidaria todos, os gêmeos, seus pais, para jantar no melhor
restaurante da cidade, e eles diriam que não souberam entendê-lo e o trataram
muito mal. Pediriam desculpas e chorariam, e o tempo todo ele não diria nada,
deixando aquelas desculpas passarem por ele. E, então, daria um presente para
cada um deles, e era seguida sairia novamente da vida deles, dessa vez para
sempre.
Era um belo sonho.
Na verdade, ele sabia que continuaria andando e que seria encontrado
no dia seguinte ou dois dias depois, e voltaria para casa e levaria bronca, e tudo
seria como sempre foi, e dia após dia, hora após hora, até o fim dos tempos, ele
continuaria sendo o Nanico, a única diferença é que eles estariam furiosos com
ele por ter ousado fugir.
 — Preciso ir dormir daqui a pouco — disse Anjo. Ele começou a descer
da grande faia.
O Nanico descobriu que descer da árvore era mais difícil. Não dava
para ver onde você estava colocando o pé, era preciso ficar tateando para achar um lugar. Várias vezes ele perdeu o apoio e escorregou, mas Anjo estava abaixo
dele e dizia coisas como "Um pouco mais pra direita, agora", e os dois
conseguiram descer sem problemas.
O céu continuava a clarear, a lua estava sumindo, era mais difícil
enxergar. Eles voltaram pela vala. Às vezes, o Nanico não tinha certeza de que
Anjo ainda estava com ele, mas, quando saiu da fenda, viu que o garoto estava
ali, à sua espera.
Eles não falaram muito enquanto subiam para o riacho. O Nanico pôs o
braço no ombro de Anjo, e os dois caminharam juntos, — Bom — disse Anjo —,
obrigado pela visita. — Eu achei divertido — comentou o Nanico. — Eu
também. No meio da floresta, um pássaro começou a cantar. — Se eu quisesse
ficar...? — perguntou o Nanico de repente, mas parou. Posso não ter outra chance
de mudar minha vida, pensou o Nanico. Ele nunca iria ver o mar. Nunca iriam
deixá-lo.
Anjo não disse nada por um longo tempo. O mundo estava cinza. Mais
pássaros se juntaram ao primeiro.
— Não posso fazer isso — explicou Anjo, por fim. — Mas talvez eles
possam.
— Quem?
— Aqueles que estão lá dentro. — O garoto pálido apontou para cima,
para a casa de fazenda em ruínas, com as janelas estilhaçadas, cuja silhueta se
destacava na aurora. A luz cinzenta não a mudara. O Nanico sentiu um calafrio.
— Tem gente lá dentro? Você não falou que estava vazia? — Não está
vazia — respondeu Anjo. — Eu disse que ninguém vive lá. São coisas
diferentes. — Ele olhou para o céu. — Agora preciso ir — acrescentou. Ele
apertou a mão do Nanico, e simplesmente não estava mais lá.
O Nanico ficou sozinho no pequeno cemitério, ouvindo o canto dos
pássaros no ar matutino. Depois, começou a subir o morro. Era mais difícil
sozinho.
Ele pegou sua mochila no lugar onde a deixara e comeu sua última
barra de chocolate, olhando para a construção em ruínas. As janelas vazias do casarão eram como olhos que o vigiavam.
Estava mais escuro lá dentro. Mais escuro do que tudo. Ele abriu
caminho no quintal tomado pelo mato. A porta da casa praticamente se
desintegrara. Ele parou na entrada, hesitante, perguntando-se se devia fazer
aquilo. Sentia cheiro de umidade, podridão, e mais alguma coisa.
Pensou ouvir algo se mexendo dentro da casa, no porão ou no sótão.
Uma agitação, talvez. Ou um salto. Era difícil saber. Finalmente, ele entrou.
Ninguém disse nada. Outubro encheu sua caneca de madeira com
sidra, esvaziou-a e encheu-a de novo.
— É uma história — declarou Dezembro. — É o que posso dizer. — Ele
esfregou seus olhos azul-claros com o punho.
A fogueira estava quase apagada.
— O que aconteceu depois? — perguntou Junho, nervosa. — Depois
que ele entrou na casa?
Maio, sentada ao lado dela, pôs a mão no seu braço e disse:
— É melhor nem pensar nisso.
— Mais alguém quer falar? — perguntou Agosto. Silêncio. — Então
acho que terminamos.
— Isso precisa ser oficializado — salientou Fevereiro.
— Todos a favor? — perguntou Outubro. Houve um coro de "Sim". —
Alguém contra? — Silêncio. — Então declaro a reunião encerrada.
Eles se afastaram da fogueira, espreguiçando-se e bocejando, e
desapareceram na floresta, sozinhos, aos pares, em trios, até que só ficaram
Outubro e seu vizinho.
— Na próxima, será a sua vez — anunciou Outubro.
— Eu sei — disse Novembro. Era pálido, de lábios finos. Ele ajudou
Outubro a se levantar da cadeira. — Eu gosto das suas histórias. As minhas são
sempre sombrias demais.
— Não acho — discordou Outubro. — É que suas noites são mais
longas. E você não é tão quente.
— Olhando por esse ângulo — comentou Novembro -, me sinto melhor.
Afinal, não escolhemos ser quem somos.
— Esse é o espírito — disse o seu irmão.
E eles deram as mãos ao se afastarem das brasas alaranjadas da
fogueira, levando suas histórias de volta para a escuridão.

PARA RAY BRADBURY- NEIL GAIMAN
COISAS FRÁGEIS
Tradução: Micheli de Aguiar Vartuni